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Festival do Clube 2019

Fabio Fernandes: A propaganda não acabou

24.09.19

Vocês sabem que eu estou desempregado?”. A pergunta, disparada em meio a uma reflexão, gerou uma explosão de risadas quase ao final do painel que teve como protagonista Fabio Fernandes, um dos fundadores da F/Nazca S&S. Um dos últimos palestrantes do Festival do Clube de Criação 2019, o criativo subiu ao palco da Cinemateca Brasileira em uma apresentação sem título, definida assim pelo próprio, para contar por que abriu uma agência 25 anos atrás e para salientar que a propaganda não acabou, mesmo que sua saída do negócio que criou, da maneira como se deu, possa causar essa impressão em alguns.

Fabio Fernandes deixou a F/Nazca em agosto, desligamento comunicado ao mercado pela Publicis Communications, rede que engloba as empresas criativas do Publicis Groupe. A mensagem afirmava que a agência continua a atuar e está focada em definir um novo modelo de negócio (relembre aqui). Além de agradecer a liderança de Fabio e reconhecer que seu trabalho estabeleceu a F/Nazca como uma referência de criatividade, o comunicado não dizia mais do que isso.

Horas depois desse comunicado ter sido divulgado, Fabio publicou um texto em que contava o “fim de uma história linda”. Nele, entre outros pontos da trajetória da agência e de sua marca na publicidade brasileira, o criativo apontou que o Publicis Groupe entendia que ele não era a pessoa idealpara prosseguir em quaisquer que sejam os novos planos para a F/Nazca”. E destacou: “A depender de mim eu jamais deixaria a agência” (reveja o texto aqui).

Quarenta e oito dias depois, Fabio rememorou parte dessa história e defendeu o valor da criatividade e da ousadia em um negócio em transformação que é a propaganda. Ele iniciou seu painel com uma pergunta. “Por que abri uma agência?” Sua viagem pela memória o levou a 1993, em que o quadro de agências de publicidade estava mais uma vez se modificando. Alguns players internacionais chegavam ao país em busca de novos talentos da criação. Naquele tempo, Fabio, “um moleque de 30 anos que se achava muito contestador”, não se sentia plenamente adaptado ao modo como se trabalhava no mercado.

A propaganda sempre foi a busca pelo máximo, pelo mais emocionante, pelo que mais motivasse a gente fazer mais no dia seguinte”, disse. Mas, assim como na música, é possível ter sucesso com algo que você tenha vergonha de tocar em casa, mas que vende para caramba. E é possível fazer da música algo do qual se orgulhe muito. “Tenho bastante vergonha do sucesso a qualquer preço”, emendou.

A abertura da agência teve a ver com isso, comentou. Ele queria que fosse um lugar para fazer um trabalho bacana, mas que ao mesmo tempo fosse ágil, um lugar em que as decisões acontecessem sem burocracias. “Não era o mundo em que eu vivia naquela época”.

Em outra memória, Fabio reviveu uma conversa com um cliente que tinham conquistado na agência em que trabalhava, a Y&R. Tinham feito uma campanha do óleo de soja Soya e a empresa ofereceu a criação de um comercial para a margarina Bonna. Fabio apresentou uma campanha e o presidente da companhia reagiu com um “não, não é isso não”. E perguntou se ele havia visto uma campanha, que tinha “um puta jingle e um puta fotógrafo”.

Era uma peça que “não tinha ideia nenhuma, era só um jingle tocando”, explicou Fabio. O presidente da empresa queria algo parecido com aquilo. “Com aquela merda?”, perguntou, sem papas na língua. Mas era um fotógrafo estrangeiro, argumentou o homem. Depois de dizer que aquele trabalho não era muito seu estilo, Fabio respondeu que voltaria, mas acrescentando alguma ideia à proposta.

A campanha que criou tinha uma fotografia linda, com a margarina derretendo em pães quentinhos e em outros alimentos. E tinha um jingle cantado com suavidade. Em dado momento, a câmera se aproximava do alimentos e os abocanhava, enquanto o intérprete do jingle cantava com a boca cheia. O filme conquistou Leão de Ouro em Cannes.

Para mim isso virou um pouco o símbolo da resistência”. Ou seja, de resistir a modelos que fazem sucesso no mercado, que se tornaram referências para clientes com boas intenções, mas que têm visões limitadas daquilo que é o ofício dos publicitários - e não o deles. De resistir à tentação de simplesmente ceder para agradar o cliente.

Início da F/Nazca

Com os sócios Ivan Marques e Loy Barjas, Fabio abriu a F/Nazca em 1994. Não havia contas, exceto as de luz, água, telefone e gás. Seu anúncio inaugural foi sobre a chegada da agência, “a última do ranking”. Para o novo negócio, a S&S buscou uma empresa de headhunting para encontrar alguém para ser diretor financeiro. E veio Olga Monroy, que não era do negócio da propaganda, e sim do setor de investimentos. Os santos não bateram (“Eu, quando não gosto, não gosto mesmo”), mas ainda assim ela foi para a agência.

Os conflitos surgiram de imediato. Com a agência ainda em obras, ela mandara colocar um cadeado na geladeira - o que sinalizava o estilo austero da executiva. O controle financeiro era tão severo que ela fazia economia na compra de itens. Um deles, o papel higiênico. Fabio resolveu escrever um memorando. No papel higiênico. “Imagine escrever numa folha de papel higiênico com uma Bic. Ele fura, a menos que seja uma lixa. Eu escrevi: ‘De Fabio Fernandes para Olga Monroy. Cara Olga, está certo que estamos todos aqui ralando o c*, mas não precisamos ser tão literais. Obrigado’”.

Após as risadas, Fabio lembrou que começou a agência com a certeza de fazer o negócio pela reputação. Muitas vezes abre-se uma empresa pela oportunidade do negócio. “O jeito como abrimos a F/Nazca foi quase de estudante, que é ‘eu vou estudar para essa profissão. E depois vou trabalhar nessa profissão’. Nessa fase, não existe a oportunidade ainda. A agência foi criada como uma pessoa física, apaixonada por esse negócio, e que acreditava que, pela paixão, pela qualidade e excelência criativa que buscava, ela iria alcançar até objetivos econômicos.”

A F/Nazca surgiu desse modo, ganhou clientes, teve momentos de crescimento exponencial, de reputação e até financeiro. Surgiram “anos inacreditáveis e com expansão regular em sua história até 2013, 2014, em que o cenário econômico impactou o negócio. “Em 2001, que foi um dos anos espetaculares, em que dobramos em relação ao ano anterior, fomos Agência do Ano no Festival de Cannes”.

Fabio recordou alguns dos cases criados para Skol para mostrar a importância de se ter coragem na propaganda. Em uma dessas campanhas, ele provocou Carlos Lisboa, então responsável pelo marketing da marca de cerveja. Aproximou-se com um conceito dizendo que ele não teria coragem de aprovar a ideia. Ante a pergunta-espanto do executivo (“Como assim? Como assim?”), o criativo respondeu: “É uma campanha muito corajosa, separa os meninos dos homens. É uma coisa assim, pra gente mais madura. Ele pediu para contar, eu contei e a gente fez”. Também falou da campanha da tartaruga da Brahma, que se tornou mascote da seleção brasileira, em 2002, ano do Penta, sem que isso tivesse sido planejado.

Agências questionadas

O criativo disse que é preciso estar preparado para se adaptar, para ir se modificando, mas também é importante estabelecer limites. Segundo ele, é preciso manter algumas culturas que são imutáveis. Mas anunciantes ficam, às vezes, cansados dos modelos de agências. Ou, nas palavras de Fabio, se sentem reféns de um modelo em que “a figura central da agência é importante para os superiores daquela empresa. Isso, de alguma maneira, pode incomodar algumas vaidades”.

Com problemas desse tipo, as agências passam a ser bastante questionadas. Tudo que está em volta, no ecossistema daquele anunciante, parece ser mais importante do que o que diz uma agência. “Esse é o grande problema do que acontece do ano 2008 para frente. É a hora em que os anjos de antes não significam absolutamente mais nada.” O anunciante busca outras inspirações que não sejam só do negócio da propaganda.

Os publicitários têm culpa. Deixaram isso acontecer. Também por vaidade. Também por falta de capacidade de se unir, de mostrar o modelo como sendo coeso, saudável e fundamental para os anunciantes. Começaram a fazer jogo o mais baixo possível para ganhar conta, como questões de remuneração”, acrescentou. De acordo com ele, foi-se destruindo o modelo. “Qualquer um que apareça dizendo que não é agência de propaganda é mais importante do que um cara que é de agência de propaganda”.

Yesterday, Beatles

Depois de citar mais algumas campanhas - todas campeãs de popularidade -, como a da tartaruga da Brahma driblando um motorista de caminhão na estrada, Fabio perguntou ao público se elas fossem apresentadas hoje, seriam consideradas boas? Ante a resposta positiva da plateia, ele provocou uma reflexão: “O que mudou na propaganda tanto? Por que isso não pode mais ir para o ar? O que mudou que tem uma tecnologia f*da, de pesquisa, infalível, que não cria uma p*rra de um case fudido? Passamos 36 semanas seguidas como a propaganda mais lembrada e querida. Me contem um case que saiu do forno de um desses institutos de pesquisa de merda desses que a gente tem de obedecer”.

Segundo Fabio, esses institutos “só mandam fazer aquilo que não incomoda ninguém”. Que não muda nada. “Ou com aquilo que a gente está vendo na televisão está todo mundo orgulhoso? ‘Viva o Brasil. Que bonito demais’. Puta presidente e puta propaganda que a gente tem, hein”.

O criativo fez uma comparação com o filme “Yesterday”, em que os Beatles deixam de existir, exceto para uma pessoa que passa a tocar as músicas do quarteto de Liverpool - e que faz sucesso com elas. Para Fabio, a história é simbólica para a propaganda. Segundo ele, o filme é uma homenagem à inteligência das pessoas. Em qualquer época em que se lançasse “Yesterday”, as pessoas ficariam embasbacadas.

O que mudou foi a música. Não as pessoas que estão ouvindo música. Tem música boa, tem música legal, tem música bem ruim. Mas não tem Beatles mais. O negócio da gente precisa de Beatles. E para ter Beatles precisa ter culhão, precisa ter coragem”.

Sem desânimo

Nesse momento, Fabio revelou que aceitou o convite do Clube de Criação para falar no Festival porque veio de uma entidade que ama porque representa “a minha profissão da maneira mais pura que existe neste mercado brasileiro”. Ele contou ainda que aceitou com a condição que se impôs de apenas fazer as pessoas refletirem sobre isso, mas de maneira nenhuma com o objetivo de desanimá-las com suas ponderações. “Não é porque estou desempregado, nessa condição triste, que eu vou ficar destruindo o espaço e o sonho das outras pessoas. Sempre gostei de trabalhar com gente jovem, apaixonada e que sonha. Nunca vou virar um ser caquético e patético que vai dizer para as pessoas que (a propaganda) acabou”.

É importante fazer essas reflexões, salientou. Na F/Nazca, disse Fabio, estão todos tristes, porém ele não quer que fique a impressão de que tudo terminou. Há outros valores em questão. Como declarou, durante todos os anos da F/Nazca estava claro que ela era "uma agência que deixava nas pessoas um selo de qualidade”. Era sair de lá que o profissional conseguia mais dois empregos por causa de sua passagem pela empresa, afirmou.

Segundo Fabio, a F/Nazca, além de ser marcada pela busca da excelência criativa, construiu um caráter. Foi trabalhada uma cultura de agência, que estabelece que o ambiente é aberto, coletivo e em que é obrigatório que as pessoas participem mais e ajudam umas às outras. O criativo disse que não adianta nada pensar em ganhar um GP de Film de modo individual - porque não se ganhará nada -, e sim que vale mais tentar trabalhar com mais 20 pessoas para, juntos, conquistarem um GP de Film em Cannes, o que a F/Nazca conseguiu em 2015, com “100”, para Leica.

Com essas palavras, Fabio deu a entender que quem trabalhou na agência ou quem não trabalhou mas tem esse espírito podem se juntar e formar uma resistência. E mostrar que é possível ter um lugar humano para se trabalhar, em que se tenha tesão de fazer algo legal porque se encara o local como algo maior do que um emprego, e gere uma campanha da qual se orgulhe. Não se pode permitir que a atividade se torne mais desimportante, afirmou Fabio, que desconversou sobre futuro. Preferiu falar ao público sobre ações para o presente. “Faça a diferença. Junto com outras pessoas”.

Cultura você faz contando histórias”, disse, ao final do painel. “Não me perguntava porque abri uma agência. Não me perguntava porque não me arrependi de ter feito. Abri porque foi a melhor coisa que fiz na minha vida profissional.”

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