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O Espaço é Seu

Ideias, insights e comoditização da criatividade (Thiago Espeche)

12.01.24

A ilusão de que "uma boa ideia pode vir de qualquer pessoa" é hoje amplamente difundida em nosso mercado, mas merece uma análise cuidadosa.

É inegável que todos têm potencial para ter ideias. No entanto, a qualidade e aplicabilidade dessas ideias podem variar significativamente.

Embora seja verdade que todos possuem alguma capacidade criativa, argumentar que são capazes de gerar ideias inovadoras e valiosas para o mercado publicitário, por exemplo, seria exagerado. A criatividade é um espectro, e nem todos estão no mesmo ponto deste espectro. E infelizmente ainda não existe uma Escala de Kardashev para medir o grau de desenvolvimento tecnológico de uma civilização focada na capacidade criativa humana (mas em breve, com certeza, haverá).

Além disso, a criatividade necessária no contexto publicitário é um tipo específico, que envolve não apenas a geração de ideias, mas também a habilidade de executá-las de maneira eficaz, comunicativa e, principalmente, estratégica.

O discurso ("boas ideias podem vir de qualquer pessoa") soa bonito e inclusivo, porém, não é verdade. Na Era do Desempenho em que vivemos, essa prerrogativa pode se transformar em um fardo enorme. Acreditar que "bons insights podem vir de todos" é uma perspectiva mais realista e igualmente inclusiva. Um insight é um momento de clareza, uma compreensão súbita que pode ser a faísca para uma grande ideia. Todos nós temos esses momentos, independentemente de nossa profissão ou experiência. No entanto, transformar esses insights em ideias concretas, especialmente ideias que possam ser vendidas e executadas, é uma habilidade que requer treinamento, experiência e uma compreensão profunda da sociedade.

Devemos reconhecer que a criatividade é ainda o principal motor do nosso mercado, e dizer que ela pode ser germinada por qualquer pessoa, em qualquer terreno, faz com que ela perca valor.

Se você é da criação, não deixe que digam que qualquer pessoa pode fazer o seu trabalho, que seu talento é comoditizado. E não é casualidade o fato de que esse pensamento veio junto com a queda de salários. Numa época em que as ideias são tão importantes, é natural que o mercado faça de tudo para que elas sejam barateadas.

Outro clichê que tenho ouvido e que diminui o valor das ideias e da criação é: "Ter ideias é fácil. O mundo está cheio de ideias. O difícil é executar." Vamos analisar a primeira parte: "ter ideias é fácil...". Quem diz isso nunca teve uma ideia verdadeiramente criativa. Nunca entrou na escuridão, com lama até os joelhos, segurando uma lanterna quase sem pilha, à procura de uma ideia do tamanho de um brinco de ouro. E pior, olhar para aquele local sombrio e achá-lo um paraíso.

Vamos para a segunda parte. "O mundo está cheio de ideias...". Isso é verdade, mas vamos ajustar um pouco a frase: "O mundo está cheio de ideias incríveis e ideias péssimas". Se você tentou viajar com milhas e acabou trocando os pontos por um aspirador de pó, já viu o novo Mordedor Exercitador de Maxilar Quadrado ou se você já assistiu "The Idol," sabe do que estou falando.

E a terceira parte: "O importante é a execução." Essa é a parte da frase que mais me indigna. É verdade, executar uma ideia é muito difícil. No entanto, por que colocar "ter uma boa ideia" e "executar uma boa ideia" em um ringue? Eles são complementares! Ambos são difíceis. Ambos são valiosos. Quando um grande roteirista encontra um grande diretor e um grande produtor, a mágica acontece. Quando um grande redator encontra um grande diretor de arte ou um grande atendimento, as ideias florescem. É assim! Existirá cupido nesse caso? Algum santo para rezar ou colocar de cabeça para baixo? Alguma simpatia? Ainda não. Mas existirá.

E afinal, por que será que esse discurso vem sendo repetido? A criatividade se transformou em numa "moeda social", onde a aparência de ser criativo é agora um capital valioso, trazendo benefícios como reconhecimento, status e oportunidades profissionais. A busca pelo reconhecimento de uma aparente criatividade tem sido mais valorizada que a própria criatividade. Isso desvia o foco para a aparência e repetição, em vez da verdadeira arte.

Ironia do destino, essa pressão pode levar a uma homogeneização da criatividade, com as pessoas seguindo as mesmas tendências e estilos para se adequarem ao que é tido como "criativo". Esse modelo beneficia mais quem replica a cultura criativa do que quem realmente pensa e inova, já que descobrir (des-cobrir, ou seja, trazer à luz algo que antes estava na escuridão, escondida) exige muito mais tempo e estudo.

Hoje, a repetição na forma de pensar criativamente nos leva a resultados mais rápidos, atraindo tanto os não criativos quanto os verdadeiramente criativos. Muitas pessoas, ao invés de ouvirem a si mesmas e trazerem ideias genuinamente criativas e arriscadas, acabam seguindo um padrão de "criatividade", vestindo as mesmas roupas diferentes, frequentando os mesmos cursos, assistindo aos mesmos filmes, tirando as mesmas fotos etc.

Essa situação é reminiscente na mudança da maneira como as pessoas posam para fotos. Antigamente, as pessoas raramente sorriam em fotografias; não havia essa expectativa de demonstrar felicidade. Com o tempo, o "olha o passarinho" começou a impor uma obrigação social de parecer feliz. Hoje, isso evoluiu ainda mais: não basta apenas sorrir: a foto precisa ter um filtro, um efeito, um título ou algum outro elemento que mostre o quão criativos somos. Assim, tudo se transformou em uma arena para a exibição de criatividade e felicidade fabricada, reflexos da pressão para se encaixar em padrões sociais cada vez mais exigentes.

Bom, é isso. Acho que consegui terminar um texto sem a típica piadinhacriativa” que arremata e deixa a sensação ao leitor de ter lido um texto criativo, inteligente e coerente. Shit. Acabei de perder essa oportunidade.

Thiago Espeche, diretor e roteirista no Brasil e na Argentina e fundador da produtora Chucky Jason

Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.

O Espaço é Seu

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