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O Espaço é Seu

'As We Speak: A Música do Rap em Julgamento' (Gustavo Mayrink)

16.04.24

Ao contrário do que sugere o título, pouco tem se falado de "As We Speak", ótimo documentário da Paramount+ que investiga um fenômeno cada vez mais recorrente nos EUA. Desde 1990, mais de 700 julgamentos usaram letras de rap como "evidências" de acusação para crimes supostamente praticados pelos seus autores, artistas como Young Thug, Chance the Rapper e Glasses Malone. "Essa expressão artística é uma forma de confissão", deduziria um promotor que certamente não entende de música e nem da realidade das ruas.

A história é contada por Kemba, um rapper de Nova York que começa a investigação pela própria cidade e passa por Atlanta, Chicago e Los Angeles, além de Londres, onde o Drill, uma vertente mais underground do rap, está passando pelo mesmo tipo de censura. Em uma arrebatadora sequência do filme, Kemba visita o departamento de História da Música Afro-americana para juntar as notas da opressão ao longo dos últimos séculos.

Ele narra que africanos escravizados cantavam em um idioma que os capitães europeus não compreendiam. Era o único jeito deles se comunicarem secretamente. Em 1739, houve a Rebelião de Stono, a maior revolta contra a colônia britânica, em que escravizados batiam seus tambores e gritavam por liberdade. Foram reprimidos, executados e a Carolina do Sul aprovou uma lei proibindo tambores, considerado "um perigoso instrumento de rebelião".

Sem os tambores, passaram a usar seus corpos como instrumento. Cantavam versos improvisados para ridicularizar seus opressores e compartilhar sonhos de fuga e liberdade.

O blues surge como canção de protesto e gritos do campo mostrando a frustração após a guerra civil americana. A promessa de liberdade havia sido quebrada pela segregação aplicada pelo Estado. Na década de 1920 desponta uma nova onda de música criminalizada, o jazz, forjado inicialmente nos bordéis e speakeasies de New Orleans. Gangsters como Al Capone brigavam para ter os melhores artistas pretos. Com a popularidade se espalhando pelos EUA, tentaram censurar o que chamavam de "devil's music". Na sequência irrompe "um ritmo vulgar e animalesco, o rock'n' roll dos pretos", nas palavras de um provável cidadão de bem que fala em frente a uma placa em que se lê "We Serve White Customers Only". Mas o som não pode ser impedido de se propagar.

Entre as décadas de 1950 e 1970, o soul explode na cena cultural americana. Era a trilha sonora do poder e do orgulho preto, apesar da brutalidade policial. James Brown cantava: "Said it loud, I'm black and I'm proud". Quatro anos depois o DJ Kool Herc faria uma festa numa escola do Bronx, marco inicial do hip hop, o mesmo bairro em que Kemba nasceu.

O rapper também conversa com juristas e acadêmicos que são uníssonos em discorrer sobre o controle dos códigos de poder através da repressão cultural, social e do racismo, o que consequentemente condena a liberdade artística.

Eles não se recordam de Freddie Mercury, líder do Queen, tendo problemas com "Bohemian Rhapsody" ao cantar "Mamãe, acabei de matar um homem. Pus uma arma contra sua cabeça. Puxei o gatilho, agora ele está morto" ou de Johnny Cash, que "atirou em um homem em Reno só para vê-lo sangrar".

Sabendo do histórico de condenações em casos semelhantes, apenas 1% dos casos envolvendo artistas de rap e suas letras vai a julgamento, pois é preferível, mesmo sendo inocente, fazer um acordo com a promotoria a encarar uma sentença que já está sacramentada há mais de 300 anos.

Gustavo Mayrink, diretor de conteúdo e criação

Leia o texto anterior de "O Espaço é Seu", aqui.

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